sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

MINHA FAMÍLIA anda longe,



MEMÓRIA

.
MINHA FAMÍLIA anda longe,
com trajos de
circunstância:
uns converteram-se em flores,
outros em pedra, água,
líquen;
alguns, de tanta distância,
nem têm vestígios que indiquem
uma certa orientação.
.
Minha família anda longe,
- na Terra, na
Lua, em Marte -
uns dançando pelos ares.
outros perdidos no chão.
.
Tão longe, a minha família!
Tão dividida em pedaços!
Um pedaço em
cada parte...
Pelas esquinas do tempo,
brincam meus irmãos antigos:
uns anjos, outros palhaços...
Seus vultos de labareda
rompem-se como
retratos
feitos em papel de seda.
Vejo lábios, vejo braços,
- por um
momento persigo-os;
de repente, os mais exatos
perdem sua exatidão.
Se falo, nada responde.
Depois tudo vira vento,
e nem o meu
pensamento
pode compreender por onde
passaram nem onde estão.
.
Minha família anda longe.
Mas eu sei reconhecê-la:
um cílio dentro
do oceano,
um pulso sobre uma estrela,
uma ruga num caminho
caída
como pulseira,
um joelho em cima da espuma,
um movimento sozinho
aparecido na poeira...
Mas tudo vai sem nenhuma
noção de destino
humano,
de humana recordação.
.
Minha família anda longe.
Reflete-se em minha vida,
mas não acontece nada:
por mais que eu
esteja lembrada,
ela se faz de esquecida:
não há comunicação!
Uns são nuvem, outros, lesma...
Vejo as asas, sinto os passos
de meus anjos e palhaços,
numa ambígua trajetória
de que sou o espelho e a história.
Murmuro para mim mesma:
"É tudo imaginação!"
.
Mas sei que tudo
é memória...
.
.


Cecília Meireles, OBRA POÉTICA. Editora
Nova Aguilar, p. 171-172


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