sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A estupidez humana.


Estupidez e perfeição
José Marcelo Vigliar

Estou preocupado com um texto de Carlo Maria Cipolla, contido no livro "Allegro ma non troppo" (Lisboa: Texto & Grafia, 2008, tradução de Joaquim Soares da Costa), sobre a estupidez humana.

Uma pessoa estúpida, de acordo com o ensaio, é a que consegue gerar um dano a outra sem que desse dano resulte, necessariamente, uma vantagem ao agente. A definição coincide com a “terceira lei” de Cipolla sobre a estupidez.

Importante verificar que o historiador de Pavia ressalta que o estúpido, ao contrário de outras figuras aparentemente semelhantes (bandidos, ingênuos, etc.), que podem nos causar prejuízos, ou que podem ser vítimas de nossas ações, não objetiva vantagens! É isso mesmo que você leu. O estúpido não é um estelionatário. Ele prejudica os outros, mas não busca uma vantagem.

O que mais me assustou na obra desse famoso professor peninsular foi a “segunda lei” que enuncia. Volto a ela logo mais adiante. Será necessário destacá-la. Ocorreu comigo e poderá ocorrer com você: reconhecer muita gente, retomar determinadas situações e, por que não, realizar uma auto-análise. Nesse particular, temos que nos unir aos estóicos e, assim, aproveitar todo conhecimento para uma reflexão e verificar se o nosso comportamento não precisa de modificação.

Nessas reflexões, imaginei que o nosso meio (o jurídico) parecia extrapolar uma constante proposta pelo autor (vamos denominá-la “delta”), decorrente da “primeira lei” que afirma: “Sempre e inevitavelmente, cada um de nós subestima o número de indivíduos estúpidos em circulação”.

Segundo Cipolla, essa mesma lei impede que “se atribua um valor numérico à percentagem de pessoas estúpidas no total da população”. O número é limitado, pois o número de pessoas que se relacionam, em todos os meios, é limitado na sociedade.

Imitando o autor, proponho, nesse momento, um “intervalo técnico” para uma (objetiva) definição da estupidez.

Numa definição um tanto lusitana (contida na Wikipédia portuguesa) encontrei a seguinte explicação para o significado de estupidez: “a qualidade ou condição de ser estúpido, ou a falta de inteligência, ao contrário de ser meramente ignorante ou inculto. Esta qualidade pode ser atribuída às ações do indivíduo, palavras ou crenças. O termo assim também pode se referir ao uso inadequado do juízo, ou insensibilidade a nuances por uma pessoa que se julga inteligente. A determinação de quem é estúpido é relativamente difícil, apesar das tentativas de medir-se a inteligência (e assim estupidez) tais como testes de QI. O adjetivo também pode ser usado como um pejorativo”.

Comparando-a aos conceitos de Cipolla, que bem define a figura do estúpido, jamais poderíamos concluir que a estupidez seria uma qualidade. Mais: essa condição apenas pode ser pejorativa (e altamente perigosa).

Aquele que causa prejuízo (material e ou moral) a outrem sem esperar nada em troca, constitui, efetivamente, um integrante de um grupo (o dos estúpidos) mais forte e poderoso que a Máfia, o complexo industrial militar ou a Internacional Comunista (como exemplifica o autor - p. 57).

Pior: para pertencer a esse grupo, nenhuma providência é necessária. O “interessado” integra o grupo pelos seus próprios “méritos”.

Afirma o autor que em todos os grupamentos humanos a constante “delta” se faz presente. A estupidez, concluo, seria um “estado de espírito” (de porco...).

Portanto, nos grupos benemerentes e também nos bandos e quadrilhas, há uma constante de estúpidos. Talvez isso explique o porquê do fracasso de grandes iniciativas destinadas ao bem, e o porquê que determinadas quadrilhas são desbaratadas.

Nesse momento, como dizia, fiquei profundamente preocupado. Retomo, conforme mencionado, à “segunda lei”, enunciando-a: “A probabilidade de que certa pessoa seja estúpida, é independente de qualquer outra característica da mesma pessoa”.

Por favor: pare o que você estiver fazendo. Se não desejar, não leia o livro. Mas, nem que seja de uma forma estúpida, consiga o capítulo (bastante curto) sobre essa “segunda lei” (pp. 61-64). Isso será útil para a sua vida.

Talvez você se reconheça em uma ou outra situação. Paciência. “Estar” estúpido ainda é melhor que sê-lo.

Reflita um minuto: entre católicos, mulçumanos, brancos, negros, amarelos, indígenas, advogados, juízes, delegados, promotores, etc. a constante “delta” se fará presente!

É assustador, devastador, terrível.

Falamos do que conhecemos. Não posso avaliar a constante de estupidez humana entre os dentistas, encanadores, frentistas de postos de gasolina. É duro imaginar, mas até entre os voluntários que agem em prol da humanidade em grandes catástrofes, encontraremos os estúpidos.

Uma consolação: se o mundo não acabou é porque a constante deve ser pequena. Imagine se “delta” fosse significativa.

Um fator perigosíssimo deve ainda ser considerado. Cipolla tem um capítulo reservado à “estupidez e poder”. Reflete sobre os danos que os detentores de poder podem — mesmo que não se beneficiem com a empreitada estúpida — causar. Claro: “delta” está presente entre presidentes de nações, entre ocupantes de cargos públicos e, para que nos incluamos também, exercentes de funções que representam um múnus público, diante de suas disciplinas legais, ou da magnitude de suas atribuições.

Uma simples atuação de um estúpido poderoso e pronto: o dano se potencializa para vitimar centenas de pessoas pois, nas palavras do autor (p. 77), a “capacidade de prejudicar o próximo foi (ou é) perigosamente ampliada pela posição de poder que ocuparam (ou ocupam)”.

No nosso meio, é fato que nos acercamos de alguns remédios (que denominamos jurídicos) para, no mínimo, tentar fugir desses danos. Contamos com habeas corpus, mandados de segurança, duplo grau de jurisdição, reclamações aos tribunais superiores, contraditório, ampla defesa e, mais recentemente, com súmulas vinculantes. Mesmo assim, saibamos que estamos sujeitos à constante “delta”. Nem mesmo a previdência do constituinte nos livrará desse pessoal.

Eu que, por amor confessado e por dever de ofício, atuo em processos coletivos, cuja extensão dos limites subjetivos da coisa julgada material pode, e não raro alcança, pessoas indeterminadas e indetermináveis (vide, a propósito, o conceito de interesses difusos), entrei em pânico. Imaginem uma má atuação de um advogado estúpido num desses processos coletivos. Imaginem uma sentença de mérito de um magistrado que disponha de condições genéticas (ainda, p. 77) para se subsumir à “terceira lei” de Cipolla.

Ficam, igualmente, explicadas a origem de algumas leis. Ficam explicadas as atuações de certos chefes do Executivo.

Aliás, também no Legislativo a constante “delta” parece não funcionar. Uma análise mais acurada parece demonstrar que lá, deveríamos falar em “delta + x”.

Não é verdade. Se é, deve-se ao fato de que qualquer um pode integrar o legislativo, sem muitos predicados exigidos. Assim, acorrem ao “delta” legislativo, integrantes dos “deltas” de outras categorias. Mas isso é uma licença interpretativa. Quase uma estupidez. Pouca coisa é mais estúpida que o preconceito.

Conversando com alguns amigos, pude verificar, considerando suas profissões, que também partilham da sensação de que a estupidez é maior nos seus âmbitos de atuação. Um médico disse que entre os cirurgiões, o “delta” é altíssimo. Um engenheiro (e olha que esse pessoal conhece matemática) afirmou que sua categoria se enquadra às leis de Cipolla se, e somente se, imaginadas às avessas (o “delta” seria integrado por poucos: os não-estúpidos).

Foi o que mencionei acima: falamos do que conhecemos. Em determinados períodos, parece que somos assolados mais freqüentemente pelos estúpidos.

Num dos últimos álbuns do Legião Urbana, encontramos uma música muito interessante, de autoria de Renato Russo, intitulada “Perfeição”. Apesar do nome, a música retrata inúmeras situações da “estupidez humana”, que insiste em destacar e celebrar a hipocrisia, a indiferença e toda a afetação. Destaco a primeira estrofe:

“Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas e as nações
Meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é Nação
Celebrar a juventude sem escola
As crianças mortas
Vamos celebrar nossa desunião
Vamos celebrar Eros e Thanatos
Percephone e Hades
Vamos celebrar nossa tristeza
Vamos celebrar nossa vaidade.

Que as “leis” de Cipolla não exijam, como alertava Ihering ("A luta pelo direito"), “uma duração ilimitada”.

Assim, seguindo o compositor, poderíamos terminar a canção com alguma esperança: “nosso futuro recomeça: venha que o que vem é perfeição”.

Sexta-feira, 28 de novembro de 2008 - Ultima Instância

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